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26 de Abril de 2024

Fatiamento do julgamento do impeachment de Dilma Rousseff

Sob orientação do Prof. Dr. Waldir Alves

Publicado por Marina Rocha
há 6 anos

Em dezembro de 2015, o Deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados à época, aceitou a denúncia, formulada por uma comissão de juristas, de crime de responsabilidade da então presidente Dilma Rousseff.

O governo teve apoio popular e no Congresso Nacional desde o seu primeiro mandato, no ano de 2011, todavia a crise econômica e institucional, concomitante à divulgação de esquemas de corrupção dentro de entidades governamentais, fez com que a então presidente perdesse aliados no Congresso Nacional e ocasionou a insatisfação social, fatos que foram decisivos para a perda do mandato.

Superadas algumas divergências, o Supremo Tribunal Federal determinou o rito do processo de impeachment na Câmara dos Deputados e anulou a votação que definiu os membros da comissão analisadora do caso em momento anterior à votação pelo plenário. Realizada a votação, a Câmara decidiu pela remessa do processo ao Senado, para que fosse apurado o suposto cometimento de crime de responsabilidade pela presidente.

A comissão do Senado, após a realização de audiências públicas e debates, abriu o processo em relação à presidente em maio de 2016. Partindo daí, o então presidente do Supremo, Ministro Ricardo Lewandowski, passou a conduzir o julgamento, determinando que a votação final do processo de impeachment no Senado seria dividida em duas etapas: uma sobre a perda do mandato e a outra sobre a inabilitação de seus direitos políticos.

Na primeira etapa, Dilma Rousseff foi condenada pelo crime de responsabilidade e destituída do seu cargo pelo Senado sem, no entanto, ter seus direitos políticos cassados, fato que gerou controvérsias, já que a Constituição é taxativa ao dispor sobre as consequências de condenação do presidente por crimes desta natureza, conforme dispõe o art. 52, parágrafo único, verbis:

Art. 52. Compete privativamente as Senado Federal:

I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 02/09/99)

(...)

Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.

Portanto, a aplicação das penas do parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal caracteriza o chamado impeachment, qual seja a perda do cargo e a suspensão dos direitos políticos. Portanto, ao “fatiar” o julgamento pelo Senado Federal, o Ministro Ricardo Lewandowski inovou o conteúdo constitucional, justamente pelo texto constitucional ser claro ao aduzir que a perda de direitos políticos é inerente à condenação do presidente pelo crime de responsabilidade, não dando possibilidade interpretativa acerca do tema, sendo também o entendimento de José Afonso da Silva:

Note-se que a inabilitação decorre necessariamente da pena de perda do cargo, pois, no sistema atual, não comporta apreciação quanto a saber se cabe ou não cabe a inabilitação. “Com inabilitação” é uma cláusula que significa decorrência necessária, não precisando ser expressamente estabelecida nem medida, pois o tempo também é prefixado pela própria Constituição.[1]

O procedimento adotado para a apuração do crime de responsabilidade pela ex-presidente Dilma Rousseff é sólido na Constituição de 1988, sendo a punição através do impeachment instituída pela Constituição de 1891, baseada no modelo dos Estados Unidos, como ressalta o Ministro Carlos Veloso:

A primeira Constituição Republicana, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, instituiu no Brasil o impeachment segundo o modelo americano. Limitou-o, entretanto, ao Presidente da República, aos Ministros de Estado e aos Ministros do STF e estabeleceu que os crimes de responsabilidade, motivadores do impeachment, seriam definidos em lei, o que também deveria ocorrer relativamente à acusação, o processo e o julgamento. A Constituição de 1891 estabeleceu também que o Senado, no julgamento do impeachment, seria presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal.[2]

Para que se tenha um melhor entendimento acerca do “fatiamento do impeachment”, é recomendável que se retome alguns posicionamentos da Suprema Corte no caso do ex-presidente Fernando Collor de Melo que, em 1993, teve seus direitos políticos suspensos com a sua renúncia ao cargo. Essa decisão foi, posteriormente, confirmada pelo Supremo no julgamento do Mandado de Segurança 21.689/DF, relatado pelo Ministro Carlos Velloso.

Naquela oportunidade, ventilou-se a possibilidade de separar a penalidade de inabilitação para funções públicas durante oito anos, justamente porque o ex-presidente Fernando Collor renunciou ao cargo durante o seu julgamento perante o Senado. Sobre o caso, José Afonso da Silva esclarece:

No caso Collor de Mello, o Senado teve que se pronunciar precisamente, porque a renúncia se dava exatamente no momento do julgamento e cumpria verificar, à falta de precedentes, se o processo se encerrava ou se prosseguia o julgamento para concluir pela aplicação da pena de habilitação para a função pública pelo prazo de oito anos. A decisão foi no sentido de que o julgamento prosseguia e, em prosseguimento, concluiu, como não poderia ser diferente, pela inabilitação, considerando esta decorrente da perda do cargo pela renúncia.[3]

Portanto, no caso Collor, debateu-se acerca da suspensão de direitos políticos em virtude de sua renúncia, justamente pelo fato desta ter se dado durante o seu julgamento, tendo o Senado optado pela aplicação da penalidade do parágrafo único do art. 52 da Constituição de 1988, diferentemente do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, que não renunciou, o que ensejaria na aplicação das disposições constitucionais sem maiores discussões, eis que há previsão inequívoca de que, com a condenação à perda do mandato por crime de responsabilidade, inabilita-se, por oito anos, para o exercício de função pública.

Assim, com a divisão da sessão do Senado, em um primeiro momento, quanto ao quesito de cometimento do crime de responsabilidade, a então presidente restou condenada, tendo o seu mandato cassado. Em seguida, no que tange à aplicação da pena de inabilitação para o exercício da função pública, mesmo sem a Constituição facultar tal possibilidade, optaram pelo afastamento da referida penalidade.

Ressalta-se que não há permissão no ordenamento jurídico para que o julgamento de crime de responsabilidade pelo Senado cometido pelo Chefe do Executivo seja dividido, tanto no texto constitucional, quanto na Lei Federal 1079/50, recepcionada pela Constituição de 1988, que regulamenta o processamento e o julgamento do impeachment, tampouco margem para que se possa entender de maneira distinta ou omissão legislativa que justifique tal inovação.

Conforme pontua Ana Paula Ávila, a questão sequer pode ser tratada como um caso de mutação constitucional, ao ultrapassar os limites de uma necessária atualização:

A norma constitucional [art. 52, parágrafo único] é claríssima ao estabelecer que a condenação no processo de impeachment consiste na perda do cargo com inabilitação para o exercício de função pública. Lewandowski, ao determinar que a votação dos senadores sobre a condenação fosse desmembrada de modo a admitir o afastamento do cargo sem a consequência que a Constituição determinava –a inabilitação para função pública– foi muito além de uma atualização necessária ao texto, para modificar de forma antidemocrática, inconstitucionalissimamente, a norma constitucional. Passou de “guardião” a “dono” da Constituição, sem qualquer norma ou justificativa válida a amparar-lhe tal atitude. [4]

Ao exercer uma de suas funções atípicas, qual seja o julgamento do chefe do Executivo por crime de responsabilidade, houve inovação ao desconsiderar a disposição constitucional e aplicar o disposto em legislação ordinária para os casos de julgamento do Procurador-Geral da República, por disposição da Lei 1079/50:

Art. 68. O julgamento será feito, em votação nominal pêlos senadores desimpedidos que responderão "sim" ou "não" à seguinte pergunta enunciada pelo Presidente: "Cometeu o acusado F. o crime que lhe é imputado e deve ser condenado à perda do seu cargo?"

Parágrafo único. Se a resposta afirmativa obtiver, pelo menos, dois terços dos votos dos senadores presentes, o Presidente fará nova consulta ao plenário sobre o tempo não excedente de cinco anos, durante o qual o condenado deverá ficar inabilitado para o exercício de qualquer função pública.

Assim, em caso de julgamento do Procurador-Geral da República, admite-se a possibilidade de divisão, não facultada ao Presidente da República.

Posteriormente, com a impetração do Mandado de Segurança nº 34.378 pelo Partido Social Liberal – PSL, em que atua como impetrado o então presidente da sessão, Ministro Ricardo Lewandowski, onde se questiona o fatiamento do julgamento de impeachment. A relatora, Ministra Rosa Weber, determinou a emenda da inicial, com o requerimento de citação da litisconsorte passiva necessária, Dilma Rousseff, por ser direta e imediatamente impactada por decisão a ser proferida no referido Mandado de Segurança, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito.

A Advocacia do Senado, em parecer exarado no referido processo, aduziu que o fato da pena de inabilitação para o exercício público não ter sido aplicada à ex-presidente Dilma Rousseff não pode ser atribuído ao Ministro Ricardo Lewandowski, utilizando os seguintes termos:

A Constituição, consciente da gravidade de um processo de impeachment, que sói ocorrer em momentos extremamente delicados da vida política nacional, optou por confiar ao Presidente do Supremo, não o exame das questões de mérito - depositadas nas mãos de um colegiado eleito -, mas sim uma outra missão, não menos importante: a de presidir o julgamento, e, assim, a de zelar pela observância das regras regimentais e procedimentais, garantindo isenção, isonomia e lisura no julgamento pelo Senado.[5]

Entretanto, contraditória é a manifestação da Advocacia do Senado, eis que ao referir que cabe ao presidente da sessão zelar pela observância das regras regimentais e procedimentais, garantindo isenção, isonomia e lisura no julgamento pelo Senado, não se atentou ao fato de que o disposto no parágrafo único do art. 52 da Constituição é uma regra procedimental e não foi observada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, podendo, portanto, atribuir-lhe a inovação do fatiamento.

Os autos encontram-se conclusos desde 22 de março de 2017, com o mérito pendente de apreciação.

Superada a questão antagônica do julgamento realizado com o ordenamento jurídico vigente, mais uma contradição irrompe ao presente caso. Ainda que permitida a possibilidade de divisão do julgamento, não há sentido na condenação ao crime de responsabilidade – considerado ato atentatório à Constituição – sem a penalização por esta conduta, criando precedente para que, em situações similares, possa-se cometer o mesmo engano.


[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª ed. Editora Malheiros, São Paulo-SP. Pg. 552.

[2] Mandado de Segurança 21.623-9/DF, voto do Ministro Carlos Velloso, pgs.18-19 apud NOGUEIRA, Lauro. O Impeachment, especialmente no Direito Brasileiro. 1947. Pág 72.

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª ed. Editora Malheiros, São Paulo-SP. Pg. 552.

[4] AVILA, Ana Paula Oliveira. Mutação constitucional e a decisão condenatória do Impeachment: o legado didático de Lewandowski. In Revista Colunistas Direito do Estado, num. 265, 2016. Capturado em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Ana-Paula-Oliveira-Avila/mutacao-inconstitucionale a-decisao-condenatoria-do-impeachmentolegado-didatico-de-lewandowski-

[5] https://www.conjur.com.br/dl/parecer-senado-fatiamento-impeachment.pdf fls. 5-6. Acessei pelo link https://www.conjur.com.br/2016-set-13/lewandowski-nao-responsabilizado-fatiamento-senado, em 23/10/2017 às 00:49

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